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Poema visual Caio Ribeiro   © 2020 Atenção a Tensão  

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REVESTIDOS EM FOGO

Criar na abertura dos olhos o fascínio das lentes deformadas. Criar ao perseguir os instantes das chamas. Na tensão dos desejos de resistência, o espaço do sonho nos oferece uma escuta.

Revestidos em fogo, procuramos significar com gestos, ritos e danças. Os corpos almejam dialogar na reação das porosidades em paisagens sobrepostas, faces silenciadas e criaturas ilusórias nas cesuras pela floresta. 

O estar no mundo diante da ruína dos seres refrata-se na arte a partir da sensibilidade ao entorno ardente do Cerrado. Há tensão em responder o alerta do hoje. Atenção, fogo! 

Lívia Bertges,

escritora e pesquisadora interartes

ATENÇÃO A TENSÃO

Lá para trás, num tempo que de tão longe não pode ser contado, o Sol foi a única fonte de luz e calor para gentes de tantos lugares. Afora a luz solar, só o poderoso Raio, seguido de seu vozeirão, que de raro em raro provocava encontros entre a nuvem e a terra para produzir fogo. E a nuvem-terra consagrava piedosas oferendas de labaredas, a cozinhar alimentos, iluminar noites, aquecer corpos.

 

E o fogo da nuvem-terra atinou sua qualidade de quem tem força e pela qual passou a ser estimável.  Mas, as gentes queriam o fogo, aquele que não pode ser tocado, intuitivo às suas vontades. O Raio, quem ligava a nuvem à terra, era impiedoso: labaredas descendiam a seu talante. Luz e calor não poderiam estar inseparavelmente ligados ao Sol e ao Raio. Em tensão, as gentes, com suas mãos fechadas a guardar vaga-lumes e suas luzinhas para aquecê-los durante as noites, caminharam pela trilha da história em busca de outra fonte.

 

Entre gentes e bichos, que conversavam entre si, chegaram até o Urubu-rei bicéfalo, que ergue sua moradia na lonjura do céu, distante dos outros pássaros. Possuidor do movimento do Sol nascente ao poente, também dono do fogo, comedor de carniça. Em tenção, para roubar o fogo do Urubu-rei, um encontro marcado. Juntos, gentes, a enorme ave e a carniça.

O Urubu-rei, sabedor da tenção das gentes e de que o fogo não poderia faltar, entregou a brasa, que guardava debaixo de sua garra, que cresceria em faísca. E do ardor do pulmão, ensinou o fôlego a provocar o fogo pelo atrito de pedras ou madeiras dadas pela enorme ave.

O fogo transformou a sobrevivência das gentes de todo canto, a dissipar o medo noutrora. E o fogo caminhou pela linha da história... E mais e mais e mais gentes chegando... Em confiança mútua, ao pé das fogueiras acesas, o segredo do fogo foi compartilhado no acolhimento da diversidade. O acordo com o fogo sustentado na reciprocidade entre gentes, ancestralidade, espíritos da natureza, olhos d’água, bichos, pássaros, pedras, árvores. O fogo, a chama do pulmão, aproxima, não repele.

 

E no tempo que se leva em contas, mais e mais e mais gentes chegaram. O fogo não nasce mais da chama do pulmão. Afasta, repele, arde. O fogo não pode faltar. O raio do grito de guerra se fez soar. Gritaram as gentes da comunhão, a pensar no Urubu-rei: o fogo é nosso, não é deles. O fogo é nosso, não é deles. O fogo é nosso, não é deles. O fogo é nosso, não é deles.

 

Perpétuas desconfianças empurram horas ardentes. Rivais em potencial em tensão conquistam espaços em momentos de guerra a transtornar verdes em folhas por verdes em notas. 

 

O acordo com o Urubu-rei se desfez.

Anna Maria Ribeiro Costa

Historiadora

QUAL FOGO HABITA EM NÓS?

A Exposição ATENÇÃO A TENSÃO dos artistas Caio Augusto Ribeiro e Henrique Santian nos surpreende com o encantatório e mágico elemento FOGO. Presenteiam-nos com a possibilidade de reconexão cosmogônica do fogo na epifania com os elementos terra, ar, água, madeira e metal.

 A caligrafia invisível da exposição está ancorada num trabalho cuidadoso de compreensão dos mitos indígenas que trazem o fogo desde tempos imemoriais e a relação da humanidade com o elemento.  Propõe inúmeras frestas para interpretações que permeiam campos do conhecimento em exercícios transdisciplinares. Aponta trilhas que podem ser visitadas em três salas simbólicas: Fogo, Brasa e Cinza -  um passeio pela temporalidade cíclica da vida -  no tempo/espaço do passado-presente-futuro. Há algo muito especial na narrativa dos talentosos artistas:  o potencial dialético para olhar o fogo como disparador na construção de uma educação libertária, que ative o plano dos sentidos e potencialize a visão sistêmica e de consciência da interdependência entre ser humano/natureza.

A narrativa da exposição desvela no conteúdo semântico que em Mato Grosso os incêndios da época seca atingem os biomas Cerrado, Amazônia e Pantanal que abrigam inúmeras nascentes, veredas, locus de grande fragilidade ecológica com espécies endêmicas e milhares que terão suas populações com densidade demográfica altamente reduzidas.  O fogo que é ateado no auge da seca empobrece esses biomas porque ocorre quando as plantas produzem sementes que formam o estoque genético do solo, os pássaros estão em fase de nidificação e muitos animais em procriação.  

Imagens de satélite indicam que as queimadas ameaçam os biomas junto ao processo de expansão das fronteiras do agronegócio, convertidos em outras paisagens para a produção de comodities, o que aumenta drasticamente a erosão genética. Nesse cenário é fundamental que sejam implementadas políticas públicas voltadas para a conservação da biodiversidade.

No Cerrado, onde foram registradas as imagens de Santian, o incêndio florestal no período mais seco do ano está longe de ser o manejo em que as populações tradicionais faziam dos campos nativos, realizados na época em que havia umidade no solo e resultava em diminuição da "macega", evitando assim, os grandes incêndios. No manejo tradicional era necessário entender o sentido do vento, o horário, a época em que a natureza poderia receber o fogo sem grandes prejuízos para a vida local. Atualmente, as queimadas descontroladas que podemos chamar de incêndios, podem ser caracterizadas como ato criminoso contra a vida e uma triste desconexão com a sabedoria ancestral.

O fragmento do poema FOGO: “Chama o Xamã para destruir os mitos”,  de Caio Augusto, me provoca e traz um alerta para que os pseudomitos contemporâneos possam ser transmutados em cinzas para nutrir a semente da esperança de um mundo melhor.
 

Ruth Albernaz

Artista-bióloga e curadora independente de arte

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